O descumprimento dos decretos estaduais não podem ser criminalizados ou ensejar prisão em flagrante.
O temor de uma epidemia de Covid-19 (novo corona vírus) no Brasil iniciou movimentação dos governos estaduais na busca de conter a disseminação do vírus. No intuito de coibir a circulação de pessoas, restringiu a abertura de alguns setores do comércio, sob a ameaça de que o descumprimento destas determinações ensejaria sanções penais, incluindo a prisão em flagrante.
Em que pese algumas destas determinações terem sido flexibilizadas após a União regulamentar a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, por meio do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que definiu os serviços públicos e as atividades consideradas essenciais para a comunidade; na data de 01 de abril de 2020, última quarta-feira, o governo do Estado do RS, na contramão das expectativas, publicou o Decreto nº 55.154/20, determinando o fechamento dos estabelecimentos comerciais não considerados essenciais, sob o pretexto de resguardar os interesses da população.
O artigo 46 do Decreto nº 55.154/20 adverte que seu descumprimento acarretará punição na esfera criminal, lastreada no artigo 268 do Código Penal, bem como, prisão em flagrante, senão vejamos:
Art. 46. Constitui crime, nos termos do disposto no art. 268 do Código Penal, infringir determinação do Poder Público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.
Parágrafo único. As autoridades deverão adotar as providências cabíveis para a punição, cível, administrativa e criminal, bem como para a prisão, em flagrante, quando for o caso, de todos aqueles que descumprirem ou colaborarem para o descumprimento das medidas estabelecidas neste Decreto.
Antes de abordar a viabilidade da tipificação penal e eventual prisão em flagrante, cabe reproduzir o tipo penal apontado pelo governante:
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
O chamado “lockdown”, termo em inglês utilizado para descrever a suspensão compulsória das atividades, foi indiscriminadamente utilizado na tentativa de reduzir a velocidade de alastramento da doença e evitar o colapso do atendimento hospitalar.
Entretanto, além do interesse de os governantes assegurarem o atendimento da população que será afetada pela doença encontra-se o interesse de grande parte dos micro e pequenos empresários, que não possuem capital de giro suficiente para suportar o abrupto fechamento de seus estabelecimentos.
A justificativa é nobre e compreensível, pois o valor de uma vida é inestimável ao olhar humanitário, porém, não pode ser desconsiderada a única fonte de renda de milhões e o fato de a ineficácia do sistema hospitalar brasileiro estar há décadas esquecido por seus governantes e demais órgãos fiscalizadores, agora atuantes.
O pensamento divergente é origem de controvérsias e atitudes antagônicas a depender da estabilidade, principalmente financeira, de cada um.
Em que pese todos os esforços para minimizar os impactos da crise decorrente da epidemia, que incluem flexibilização das normas trabalhistas, suspensão do pagamento de tributos e distribuição de vales, os recursos são insuficientes para atender os anseios da população, pois as pessoas físicas e jurídicas não estão isentas das obrigações que mesmo suspensas por alguns meses deverão ser saldadas em algum momento.
Neste emaranhado de interesses e discussões há aqueles que não podem se furtar de um dia de rendimento, pois labutam para se alimentar. Esta realidade é enfrentada pelas camadas mais pobres e desamparadas da sociedade.
Portanto, entende-se que a recusa em fechar as portas de um estabelecimento, apesar de, em tese, ter capacidade de disseminar o Covid-19, não deve ser repelida por meio de ameaças penais, pois a administração pública possui ferramentas suficientes para punir eventual infrator na esfera administrativa, sempre lembrando que a esfera penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais à tranquilidade social como ultima ratio, ou seja, como última opção de controle.
Do mesmo modo, cabe enfatizar que o crime do artigo 268 do Código Penal é doloso, não podendo ser punida a conduta imprudente (ou negligente) de quem não toma os devidos cuidados para evitar a propagação da doença. Conduta diversa daqueles que tomarem todas as cautelas possíveis e indicada para os estabelecimentos considerados essenciais e que visam evitar a propagação do vírus.
Assim, entende-se que o empresário que adotar todas as cautelas indicadas pelo ente público para a execução dos serviços considerados essenciais, nitidamente não pretende disseminar o vírus, o que derruba por terra qualquer alegação de dolo ou até mesmo culpa em sua conduta.
Outrossim, o artigo 268 do Código Penal, seja encarado como crime de perigo abstrato ou delito de perigo concreto, apenas estará caracterizado quando a conduta for apta a produzir resultado, ou seja, apenas haverá tipicidade quando a conduta praticada é apta a produzir o resultado, que no caso é macular a incolumidade pública no que concerne à saúde da coletividade.
Entretanto, cabe mencionar que a questão não é tão simples como parece, pois mesmo com a natureza subsidiária do direito penal (ultima ratio), agir em contrariedade com as determinações administrativas pode dar ensejo a sanções administrativas, que devem seguir o rito legal, proporcionando o cumprimento dos Princípios do Devido Processo Legal, do Contraditório e da Ampla Defesa.
Neste contexto, mesmo considerando desarrazoado a aplicação de sanções administrativas àqueles que buscam sua sobrevivência, esta possibilidade por si afasta a necessidade do uso do Direito Penal, que, como já dito, é subsidiário. Em analogia pode ser utilizado o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual decidiu que nos casos envolvendo o descumprimento de medida protetiva de urgência da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), a própria legislação prevê sanções específicas ao caso, bem como leva em consideração o princípio da intervenção mínima do direito penal, decidindo pela atipicidade da conduta de descumprir medida protetiva de urgência.
Por fim, considerando que o empresário não pode ser responsabilizado pelo surgimento da doença, aliado ao fato de a sua sobrevivência depender diretamente da exploração econômica reforçam, ainda, a viabilidade da adoção do "estado de necessidade", previsto no artigo 23, inciso I, do Código Penal, a fim de afastar o aspecto ilícito de sua conduta.
Esta breve e superficial análise não aborda todas as possibilidades e enfrentamentos que envolvem o problema que vem enfrentando o país, porém, visa tranquilizar aqueles que dependem do seu trabalho para o sustento próprio e de sua família, mas que se sentem ameaçados à sanções penais e à possibilidade de prisão, mesmo quando forem desempenhar o direito constitucional do trabalho e da livre iniciativa.